Permitam-me que comece esta minha modesta intervenção com duas palavras que remetem para sentimentos contraditórios: saudação e lamento. A saudação vai para todos os que vieram até aqui celebrar o Dia Internacional do Cooperativismo e para os muitos que, por esse mundo fora, fazem do ideário cooperativo a razão e a essência da sua atitude pessoal e profissional. O lamento vai para a notada ausência de muitos dirigentes do cooperativismo e da Economia Social que gostaríamos de ver connosco aqui a celebrar este dia que tem um simbolismo tão grande para todos os que acreditam e põem em prática o ideal cooperativo. E gostaríamos também de ver aqui mais gente jovem, porque é nos jovens que mora o futuro e é urgente que consigamos consagrar isso nas práticas, sob risco de, com o envelhecimento natural dos atuais dirigentes, deixarmos também que as nossas organizações cooperativas envelheçam.
Talvez venha a propósito, neste dia especial para os cooperativistas de todo o mundo, remontar ao longínquo ano de 1844 quando a criação da Caixa Económica de Lisboa marca aquela que muitos consideram a primeira manifestação cooperativa, para percebermos que, desde a primeira hora o grande desafio sempre foi construir uma realidade coesa que sustentasse a expansão e consolidação da ideia cooperativa. O Congresso Cooperativo e o Congresso das Cooperativas do Norte, realizados em 1894 e 1898, são hoje tidos como momentos de diferenciação cooperativa relativamente ao resto do movimento associativo e tentativas de criação de um espírito de coesão e identidade. A Primeira República, por razões historicamente compreensíveis, acolheu de braços abertos o cooperativismo, quintuplicando, em dezasseis anos, o número de cooperativas existentes, com particular enfoque para as cooperativas de consumo. Com o Estado Novo, e particularmente a partir da segunda guerra mundial, as cooperativas começam a evidenciar-se como uma alternativa económica, construída em bases sólidas de liberdade e democracia. A edição do Boletim Cooperativo em 1851, a realização da Reunião Magna das Cooperativas e sobretudo a solidez e aceitação das ideias de António Sérgio, fizeram tremer Salazar que se viu obrigado a elaborar leis que travassem a crescente autonomia e força do movimento cooperativo. Com Abril, e com a liberdade que a revolução nos devolveu, as cooperativas ganharam novo espaço, constitucionalmente consagrado e, pelo menos na letra do discurso, foram sucessivamente assumidas como determinantes pelos poderes políticos que alternadamente nos foram governando. E das cerca de mil cooperativas que existiam em 1974, a realidade hoje, transposta para a conta satélite, aponta-nos a existência de mais do dobro, traduzindo-se em 2117 cooperativas, tendo, entretanto, ficado pelo caminho centenas de cooperativas que, por razões diversas, se viram obrigadas a fechar as portas. Mas corresponderá este crescimento a um efetivo reforço do papel e do reconhecimento da importância do setor cooperativo para a economia nacional? Nós cooperativistas, acreditamos que sim, mas resta saber se outros, particularmente os decisores políticos, nos acompanham nessa opinião. E a verdade é que as reflexões sobre os cenários macroeconómicos de desenvolvimento que têm sido traçados para o nosso país, pouco têm em conta um sector que, volto a dizê-lo, está constitucionalmente consagrado e que é responsável por largas dezenas de milhares de empregos e por cerca de 5% do Produto Interno Bruto. A verdade, por muito que nos custe aceitar, é que o próprio movimento cooperativo português tem tido dificuldade em promover estratégias de coesão e desenvolvimento que consolidem a sua importância no espaço económico e social. Por isso, antes de nos queixarmos dos outros, teremos porventura de nos queixarmos de nós próprios e das oportunidades que vamos desperdiçando.
Vivemos hoje um tempo diferente, designadamente a partir da reunião das diferentes famílias em torno da CASES e, mais recentemente, com a criação da CPES, Confederação Portuguesa da Economia Social, que, apesar de estar ainda a dar os primeiros passos, será potencialmente o interlocutor privilegiado do Estado para as matérias que tenham a ver com a Economia Social. Nós, cooperativistas, estamos de alma e coração com este projeto de participação no coletivo da Economia Social, mas fazemos questão de vincar bem a nossa identidade cooperativa e os princípios e valores com que nos regemos. Para que a Economia Social saia efetivamente reforçada, não chega que as diferentes famílias se encontrem, é preciso que se conheçam, que partilhem informações e experiências, que cooperem, que sejam solidárias umas com as outras. E esta é uma cultura que, apesar de urgente, ainda vai levar algum tempo a consolidar.
Para nós, CONFECOOP, há um marco que não podemos deixar de sublinhar neste dia de celebração para as cooperativas, que tem a ver com o facto de, a partir de 2018, termos passado a integrar a Comissão Permanente do Setor Social e Solidário, que tem por missão definir bienalmente as condições de apoio (no âmbito da cooperação) à intervenção social, num quadro de partilha de responsabilidades entre o Estado e a Economia Social. Durante anos, protestámos em todos os fóruns, perante a ausência das Cooperativas nesta Comissão, onde estavam representadas as Misericórdias e as Mutualidades (para além da CNIS, claro) e ninguém tinha em conta a opinião das cooperativas. E finalmente, com o empenhamento político do Sr. Ministro da tutela, vimos reconhecido um direito que ninguém negava, mas que também ninguém concretizava. Muito obrigado pelo seu empenho, Sr. Ministro e pode crer que daremos o nosso melhor, no exercício de uma crítica construtiva sempre que necessário, mas contribuindo com as nossas ideias e conhecimento para a construção de soluções mais eficazes e rentabilizadoras dos recursos.
Mas há ainda um longo caminho a percorrer. E uma das prioridades é a revisão dos Estatuto Fiscal, de forma a repor benefícios que a própria Lei de Bases da Economia Social enuncia. Não faz sentido, Sr. Ministro, que havendo uma proposta já trabalhada há algum tempo, não se dê celeridade a um processo que, para além de ser importante para a sustentabilidade do setor, é também um ato de justiça, face à natureza não lucrativa das organizações em causa e à missão que prestam aos cidadãos. Julgamos até que, a nível do próximo quadro comunitário, é fundamental ir mais longe, criando programas e linhas de financiamento onde as entidades da economia social possam financiar projetos de inovação e crescimento, designadamente ao nível da renovação de equipamentos e infraestruturas. E continuamos a pensar que a existência de uma estrutura financeira exclusivamente pensada para apoiar projetos da economia social, seria uma solução importante para fazer crescer o setor com qualidade e sustentabilidade.
Também não escamoteamos as nossas responsabilidades. A verdade é que ainda não podemos estar satisfeitos com aquilo que tem sido a evolução do cooperativismo em Portugal. Ao invés de nos irmos encontrando aqui e acolá, normalmente sempre os mesmos a discutir as mesmas coisas, temos que introduzir novas estratégias de sensibilização e informação, que levem as ideias cooperativas até aos primeiros ciclos escolares, que deem à opinião pública uma ideia correta do significado da intervenção cooperativa, distantes de escandaleiras que esporadicamente fazem primeiras páginas de pasquins sensacionalistas e onde se confunde uma exceção, normalmente má e condenável, com aquela que é a regra básica das cooperativas: servir com eficácia e proximidade e com transparência e democraticidade.
O tema que a Aliança Cooperativa Internacional escolheu para este ano foi “Por um trabalho decente (digno)”. E é bem escolhido, num tempo em que a precariedade marca muitas situações de emprego, em que a discriminação por razões de vária ordem, continua a ser uma realidade, e onde as formas de assédio sexual e moral chegam a atingir dimensões preocupantes, conforme identificado na Declaração do Centenário da OIT. As cooperativas, pelos valores que as regem e pelo modelo de gestão democrática que seguem, são estruturas onde as pessoas estão sempre primeiro, em todas as dimensões que têm implicações com a sua dignidade e direitos. Este é um desafio que temos que continuar a travar, porque é esta postura de defesa intransigente da dignidade e direitos, uma das marcas que nos torna distintos de outras organizações, designadamente do setor capitalista. Saudamos por isso a Mensagem da ACI que, obviamente, assinamos por baixo sem qualquer hesitação.
Gostaria de terminar esta intervenção com uma espécie de auto de esperança no futuro do cooperativismo, reproduzindo de alguma forma o esquema do conhecido poema de Kypling … Se nós, cooperativistas, soubermos construir espaços de coesão e identidade cooperativa, em vez de nos preocuparmos exclusivamente com o nosso quintalinho; se ao invés de os tentarmos evitar, formos capazes de antecipar os problemas e promover o debate das nossas novas propostas; se conseguirmos sensibilizar cada vez mais gente jovem que promova a renovação de ideias e práticas no sector; se em vez de perdermos tempo com lamentações e incompreensões canalizarmos as nossas energias para a inovação e para a qualidade, se retomarmos como referência de todos os momentos da nossa ação os princípios e valores cooperativos, se soubermos responder com convicção e razão àqueles que nos querem abalar e àquilo que representamos, então não tenho dúvidas nenhumas que temos futuro.
Permitam-me por isso que, em jeito de uma saudação imensa e calorosa que junto num abraço cooperativo marcos como a inglesa Rochdale, a espanhola Mondragón, a canadiana Desjardins ou a colombiana Equidade com exemplos notáveis de pequenas cooperativas anónimas que, um pouco por todo o mundo, constroem paz, esperança e progresso e dão sentido ao cooperativismo. Se continuarmos a acreditar, não temos razões para temer o futuro!
E, com um abraço ao amigo que nos deixou, o Jorge de Sá, que sei que algures onde estiver, está connosco como sempre esteve, deixo-vos por isso com um poema de Ary, que nos fala do futuro e de que ele gostava particularmente.
Isto vai meus amigos isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente
Isto vai meus amigos isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente
Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.
O que é preciso é termos confiança
se fizermos de maio a nossa lança
isto vai meus amigos isto vai.
Viva a Aliança Cooperativa Internacional
Viva o cooperativismo!
Viva Portugal!
Coimbra, 6 de julho de 2019